Love Is a Stranger

Esse conto foi escrito para uma possível antologia do Encontro Irradiativo. Já que  antologia não aconteceu, posto aqui, feliz.

***

Eu não gosto de boates em geral, a sobrecarga sensorial da pista de dança me incomoda profundamente, me cansa. Mas eu guardo um lugar especial no meu coração para boates de striptease. Eu sei que a maioria das pessoas que entra por essas portas enxerga as mulheres no palco como pedaços de carne para serem degustados com os olhos (e com as mãos, no caso das infames salas privativas), mas eu nunca me senti assim.
Eu vejo anjos suspensos no ar. Criaturas graciosas que flutuam como se nada as prendesse a terra. Elas são todas lindas, pele, peitos e bundas, mãos e coxas fortes sustentando os lindos corpos em posições que pareciam inconcebíveis pra mim. Eu de vez em quando pensava no treino pra pole dancing e só chegava a uma certeza: aquilo devia doer.
Eu entro na boate, já procurando o palco. Não vim apreciar o espetáculo dessa vez, mas nada me impedia de olhar e carregar algumas visões comigo. Deus sabe que eu preciso de material para minhas noites solitárias e nada como imaginar o corpo forte de uma bela stripper sobre o meu para acelerar meu coração.
Encostei no bar, uma loura tatuada se movia no palco, prometendo um universo de prazer com seus movimentos. Um dos locais ousou esticar a mão sem uma nota e foi prontamente chacoalhado por um segurança. Eu ri.
O bartender mal-encarado me pergunta o que eu quero com uma certa impaciência e eu compreendi que ele já tinha me perguntado uma vez. Peço qualquer coisa e viro de frente para o bartender, sorrindo. Ele sorri de volta. Ele entende o que eu estou passando, ou está sendo educado por que eu pelo menos pedi alguma coisa, não faz diferença pra mim. O importante é que eu sei que vou ter que pedir uma segunda bebida e deixar uma gorjeta generosa pra garantir cooperação.
Apesar de não ter uma foto, eu sei exatamente quem estou procurando, mas o apelido que o submundo deu pra ele é um tanto ridículo e eu confesso que tenho uma certa dificuldade de dizer em voz alta... Mas como dizia minha mãe, que deus a tenha (acho difícil, mas vá lá): Trabalho é trabalho, dinheiro é dinheiro.
"Avisa pro Cupido que eu quero falar com ele... Por favor." Eu franzo a testa em uma expressão de desconforto. Parece que parte do negócio é sentir na pele a humilhação de procurar pelo Cupido nos lugares mais sujos da cidade. "Vim buscar o meu pedido."
O Cupido é o homem com quem você fala pra garantir a realização dos seus desejos da forma mais limpa possível. Ele era um homem de escrúpulos. Todo mundo que trabalhava para ele tinha plena consciência do que fazia e ele nunca aceitava achar material que fosse fora da lei. Certas pessoas diziam que ele era o único comerciante de sexo com escrúpulos da cidade e eu achava isso no mínimo interessante.
"Ele está ali, do lado do palco. Segue em frente até você ver o cara saído de 1980." O bartender diz e corre pro outro lado do bar. Eu decido tentar minha sorte em vez de esperar que ele volte. Vamos ver o que o bartender acha que é 'um cara saído de 1980'.
Eu caminho na direção indicada e quando os meus olhos recaem sobre a mesa no canto esquerdo da boate eu entendo exatamente o que o bartender quis dizer.
O Cupido era alto, com o cabelo castanho penteado para trás, olhos esverdeados pequenos emoldurados por cílios longos. As sobrancelhas dele eram grossas e o nariz longo, o rosto largo. Era uma mistura que quando descrita parecia estranha, mas o resultado era uma beleza de tirar o fôlego. Ele usava jeans e uma jaqueta fechada, os punhos puxados até o cotovelo, mostrando os antebraços. Ele realmente parecia um viajante do tempo.
Trocamos as senhas combinadas previamente e tentamos conversar, mas os olhos e o sorriso dele eram uma distração muito grande para mim.
- Antes de tudo, eu preciso perguntar uma coisa.
- Eu sei exatamente o que você vai me perguntar. Todo mundo pergunta... Por que Cupido?
- Exatamente.
- Meu nome é Eros. - Ele sorri e se inclina pra trás. Uma das mãos dele descansa em cima da coxa e eu percebo que daria qualquer coisa para me ajoelhar entre as pernas dele.
- Eros?
- Minha mãe era uma riponga maconheira. - O sorriso dele aumentou, glorioso, brilhante. - Não posso dizer que ela escolheu um nome ruim.
- É um nome incomum, mas é bonito. - Eu digo, e o meu desejo por ele é tão óbvio que chega a me incomodar.
Ele pede licença e sai da mesa. Eu escondo meu rosto com a mão. Estou fazendo papel de idiota. Quando ele volta, é de braços dados com uma flor transhumana. Ela é exatamente o que eu pedi e ao mesmo tempo muito mais. Eu sinto um aperto no peito, ela é tão perfeita que me intimida.
O cabelo dela parece feito de papel arco-íris, translúcido e colorido ao mesmo tempo. Ela é alta, mais alta que eu, com os ombros largos. O vestido dela era coberto de paetês, um trapézio delicado, combinado com um par de botas brancas. Se Cupido era a década de 1980, ela era a década de 1970.
- Linda, né? - Cupido pergunta, sentando de volta no lugar onde ele estava sentado antes. Ela senta do meu lado, sorrindo. Eu viro para ela, meu sorriso ecoando o dela. - Agora eu preciso perguntar uma coisa...
- Por que ela é autoconsciente. - Eu interrompo. - Por que ela sabe que é uma mulher e por que ela pode me dizer não, mesmo que eu esteja pagando. - Eu viro para ele e coloco minhas mãos em cima da mesa. - Da maneira como eu vejo as coisas, eu paguei pela chance de conhecê-la, só isso.
- Gostei de você. - Ela diz, a voz grave e suave ao mesmo tempo. - Me diz seu nome.
- Meu nome é Maio. - Eu viro pra ela novamente. - E o seu?
- Hipólita. - O sorriso dela é lindo. Eu sinto meu corpo inteiro respondendo ao sorriso daquela mulher. Ela coloca a mão em cima da minha e se inclina na minha direção. - Que nome bonitinho. Até combina com esse seu ar primaveril.
- Ar primaveril é nova. - Eu rio.
- Seu cabelo, seus olhos, seu jeito... Me fazem pensar em uma deidade da fertilidade. - Os dedos de Hipólita deslizam sobre a minha mão, numa carícia quase íntima demais para o local. - Eu consigo te ver correndo pelos campos em algum lugar remoto... Rindo. Não sei. É só seu jeito.
- Eu me sinto obrigado a concordar. - Diz Cupido, uma expressão divertida no rosto. - Ela tem toda razão.
Eu me sinto com calor. Um dos meus sonhos está para ser realizado e... Nossa senhora, ela é linda. Ela parece me querer também. Sei que vou passar o resto dos meus dias pensando nisso, me questionando, mas nesse momento eu acho que essa foi a melhor idéia que eu tive na minha vida.
- Vamos? - Hipólita diz. - Eu não bebo, mas acho que você vai precisar de algo pra beber. - Eu seguro a mão dela instintivamente e me levanto. Hipólita se levanta, depois se inclina. Viro meu rosto na direção do dela e ela sorri.
Ela me beija, os lábios tocando os meus como se eu fosse dela, como se ela não tivesse acabado de me conhecer. Sinto os braços dela ao redor do meu corpo. Meus joelhos enfraquecem e ela, amazona que é, me sustenta. Depois do beijo, ela olha dentro dos meus olhos e eu consigo ver o brilho dos circuitos na íris dela.
- Disfarça quando olhar, mas eu acho que ele quer ir com a gente. - Hipólita sussurra no meu ouvido.
Eu olho de soslaio. Cupido está olhando para nós, sem nem tentar disfarçar o interesse que está óbvio até no caimento das calças dele. Isso nunca aconteceu comigo.
Talvez seja o meu desejo por Hipólita que tenha me deixado tão atraente. Talvez seja o motivo do meu desejo por ela o combustível do interesse dele. Não sei. Não importa. Não interessa pra ninguém ali.
Eu estendo a mão pra ele, sem saber o que dizer realmente. Ele segura a minha mão, uma certa dúvida no semblante. Eu puxo. Eu quero que ele venha. Quero que ele assista. Quero ver o desejo estampado no rosto dele.
Quero me sentir completa, como eu nunca fui. Homem e mulher nos meus braços, humano e máquina. E eu no meio. E eu a ponte. E eu ali, um pouco de cada e nada dos dois.

Comentários

  1. Adorei!! Fiquei lendo com atenção para tentar extrair o gênero do personagem, sabe? Mas quis acreditar que era mulher.. acho que porque achei legal a questão do pole, porque eu acho lindo! Haha acho fascinante no sentido mais da arte do que no sentido sexual, já fiz até aula e tal.. então me identifiquei, de certa forma... e então no final você revela que se tratava de uma mulher mesmo né.. por usar o 'completa' :)

    Beeijo

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