Keith - Oficina Colaborativa do Estranho Mundo - 5º Desafio (Segunda parte)

"O conto de vocês:
- Será em primeira pessoa. Sim!
- O narrador será o mesmo narrador do exercício anterior.
- Só que agora ele / ela é um bicho de pelúcia à sua escolha. Coelho, urso, cavalo, porquinho, gato, pinto, vaca, sucuri, você decide.
- Todo mundo nessa história é bicho de pelúcia, não existe ser humano, não existe bichinho de verdade. Podem usar a estratégia do sobrenome para indicar que bicho os personagens serão. Acho que fica mais prático.
- O conto TEM QUE ter uma pegada existencial OU policial, ou uma mistura dos dois. Sim, vocês rirão muito escrevendo isso. Sim, eu rirei muito corrigindo. Mas eu tenho que sair convencido de que aquilo tudo é crível! Pode ser um suspense, humor, terror, romance, o que for. Mas mantenham um dos pés no policial ou no existencial. Ah! Talvez ter mãos em vez de asas seja importante pra sobreviver até o final da história. Escolha com sabedoria.- O conto TEM QUE ter pelo menos 3 personagens. Eles não precisam ter o mesmo tempo de participação no conto, mas seria legal mostrar alguma interação entre eles. Pode ser um tio que foi muito importante na formação de caráter de um deles, por exemplo. Tanto faz se a relação é direta ou indireta, mas coloquem pelo menos 3 programas pra rodar na cabeça.
- Quando vocês metem só diálogo no exercício é mais fácil de corrigir, porém eu contribuo menos com opiniões interessantes. Então TENTEM encontrar um equilíbrio.
- 3 páginas! Vocês podem escrever até 3 páginas dessa vez. E um único conto! Dessa vez não vale mandar mais de um. (Espaçamento entre linhas 1,5).
- Pra saber se o narrador pelúcio está agindo de forma consistente, usarei o conto anterior de vocês como ficha de comparação. É claro que vocês podem brincar com o antes e depois desses personagens. De repente você me mandou uma menina indefesa e ela virou uma Rã Caçadora de Vampiros quando cresceu. Mas alguma conexão precisa existir."





Keith se olhou no espelho, a almofada macia da pata deslizando sobre a lateral do seu focinho. Estava velho. Seu pelo branco já não tinha o brilho de antes, tinha um acinzentado oriundo da vida na cidade. Um cinza empoeirado que nem o banho conseguia mais tirar. Era idade mesmo. O corino da ponta do nariz dava sinais que iria rachar, as costuras esgarçadas, mas seus olhos não sofreram a ação do tempo, de forma nenhuma. Azuis, eram pequenas esferas brilhantes, a pupila tão larga que só o observador mais atento veria a fina faixa azul que compunha a íris.
Ainda era um urso atraente, mesmo com a idade. Ou pelo menos era o que diziam pra ele. Colocou os óculos e voltou pro quarto, ajustando o elástico das cuecas com a ponta das garras macias.
O celular dele tocou e ele pensou em não atender. A curiosidade fez com que ele olhasse o nome no identificador de chamadas. Rachel. Com um suspiro, ele deu um tapa na tela do celular, atendendo a chamada em viva-voz, e voltou para perto do armário.
- E aí?
- E aí o que?
- Porra, Keith.
- Porra, Keith, o que? - Ele colocou a calça, depois a camisa social, rápido. Se demorou com os botões enquanto a suricate de voz alegre bufava do outro lado da linha. - Ainda não chegaram aqui, só mais tarde.
- Não é isso que eu quero saber.
- O que você quer saber, Comprida? - Keith achou que usando o apelido carinhoso pelo qual a chamava, iria ter uma folga do interrogatório.
- Como você se sente. Está com medo? Está nervoso?
- Sim.
- Keith...
- Estou com medo. Estou nervoso. - Assim que as palavras saíram de sua boca, foi como se um peso tivesse se levantado das costas de Keith. - Não sei mais se quero fazer isso. Eu não estou pronto para isso.
- Não fala assim, cara. Não fala assim. Vai dar tudo certo. Você consegue.
- Eu consigo. - Ele repetiu, mas dava pra ouvir bem a insegurança na voz dele.
- Me liga, tá?
- Pode deixar.
Ele terminou de se vestir, desceu para a sala e sentou em sua poltrona favorita. Abriu um livro. Mas a verdade é que era incapaz de ler. Estava esperando.
A batida na porta veio por volta de uma da tarde. A entregadora era uma aliá azul, linda, de quadris largos e sorriso farto. A tranquilidade dela o contaminou de alguma forma. Depois da documentação de entrega, das assinaturas, ela foi até o furgão.
Voltou seguida de uma criaturinha que se escondia em um moletom roxo. As mãos nos bolsos, o capuz puxado até o nariz, que apontava pro chão.
- Oi. - Ele disse suavemente. Se deu conta da diferença de altura e como isso intimidava todo mundo. Ele se ajoelhou, encolhendo o máximo possível e estendeu a pata imensa, numa meia oferta de abraço. - Lembra de mim, Gracie? É o Keith.
- Lembro. - Gracie tirou a patinha branca do bolso do moletom e apertou a dele.
Gracie era uma ursinha de focinho comprido e braços longos, como os dele. Eles pareciam um set. Idênticos, a única diferença era o tamanho. Ela tinha exatamente um terço da altura dele. Se ele tivesse ido na fábrica e apontado para si mesmo, eles não seriam mais parecidos.
- Você está com fome? - Ele bateu no ombro da ursinha de leve, indicando que ela entrasse. A aliá sorriu e levantou um dedo, no eterno sinal de ok. Keith assentiu com a cabeça e ela foi embora. Gracie ainda olhava pro chão. - Tem macarrão para o almoço, eu vou pedir pizza a noite... Vamos ver seu quarto primeiro?
***
Keith passou a noite em claro, pensando no processo. Pensando na sua falha em ser aprovado na lista de filhotes, depois na longa espera na fila de adoção. Lembrou de quando recebeu o primeiro telefonema, de quando visitou o orfanato. De quando mostraram Gracie pra ele, pela primeira vez, à distância. Ele lembrou de como se admirou com a semelhança entre os dois, e como ele achou que aquela coincidência era um sinal do universo. Lembrou de sentar com Gracie a primeira vez, do jeito arredio dela. Lembrou da ursinha comendo pizza mais cedo, do sorriso minúsculo que ela deu durante o jantar.
Parte dele ainda não entendia muito bem o que tinha acontecido, ainda se rebelava, mas era inegável que ele se sentia cheio de carinho pela pequena Gracie.
- Eu... Eu tive um pesadelo. – Ele ouviu através da porta fechada.
- Entra, Gracie. – Ela entrou, arrastando os pés, olhando pro chão. Ele sorriu e bateu na cama. – Quando a gente fica com medo é difícil ficar sozinho. Ainda bem que você veio, eu estou com medo também. E estava com vergonha de te contar.
- É? – Ela subiu na cama, parecendo um pouco mais segura de si. – Você não parece o tipo de urso que tem medo... Tá com medo de que?
- Pois é, né? As aparências enganam. – Keith não tinha a menor intenção de mentir pra ursinha, mas ele sabia que precisava medir as próprias palavras. – Se eu te contar do que eu tenho medo, você me conta do seu pesadelo? – Gracie assentiu e chegou mais perto dele. – Eu tenho medo de você pedir para ir embora. De você não gostar daqui.
Gracie começou a chorar. Cada soluço balançava seu corpo inteiro. A ursinha gania, desesperada. Keith a apertou contra seu corpo, com força.
- Eles vão vir te buscar! Você é velho, eu tenho medo deles virem te buscar, eles vão te levar embora e eu vou ficar sozinha de novo! – Ela gritava. – Eu não posso gostar de você, e se eles te levarem? Eu não quero ficar sozinha de novo!
Assim como os Entregadores traziam os filhotes, levavam os mais velhos. Era esse o medo da pequena. Que ele estivesse em tempo de ser devolvido pra Grande Fábrica. Descosturado antes que derramasse suas entranhas de algodão pela rua. Ela tinha o mesmo medo que ele. De ficar sozinha. De novo, mais uma vez. Eram idênticos. Keith apertou Gracie com força, curvando seu corpo ao redor dela. Ele sentia as patas dela se fechando, se agarrando firmemente à camisa dele. Nenhum dos dois ia soltar. Ela era a última chance dele. Eles eram a última chance um do outro. Nenhum dos dois ia soltar.
- Gracie. Shhhh, está tudo bem. está tudo bem. Olha aqui... Para mim. Isso. Eu não vou embora. Eles não vão me levar. Eu vou criar você. Nós vamos seguir esse caminho juntos. Você não precisa se preocupar com isso. O Entregador que vier me buscar vai perceber rapidinho que tem um compromisso em outro lugar.

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