Alternativa

Para a Oficina ELFA (Escritores de Literatura Fantástica e Associados). Junho de 2017.

1.1. M.L.
A caixa de maços de cigarro, já meio vazia, me olhava de cima da geladeira. O maço na minha mão tinha três cigarros, os outros eram apenas cinza ao meu redor. E pensar que quando mais nova eu sentia dor de cabeça se eu estivesse em um ambiente fechado saturado de fumaça de cigarro.



Apaguei a brasa do cigarro na minha coxa, delicadamente. Eu queria a dor, que me acalmava, mas acima de tudo, não queria perder a simetria das queimaduras; pareciam uma colmeia. Joguei a bituca fora e limpei a queimadura; acendi outro cigarro bem em tempo do Jornal Nacional.

Eu sempre achei que a comédia florescia em tempos de crise política, mas eu estava sentindo um pouco de dificuldade de fazer graça desde que Brasília abriu as portas pras tropas da Organização de Proteção Pan-Americana. Tá, a presença dos soldados (em sua maioria norte-americanos) foi o que catapultou... Catapultou não, foi o que me deu minha carreira, mas o preço não tão óbvio cobrado foi a perda da soberania nacional. Convenhamos, a maioria dos brasileiros faria essa troca sem nem piscar. Não faço ideia do porquê disso me incomodar tanto.



2.1. C.S.
— Bando de gringo filho da puta. — O barulho da marcha sendo passada e o ronco do carro abafaram meu resmungo. Tremendo, o ônibus se arrastava no engarrafamento formado pelas blitz. De onde eu tava dava pra ver as tendas que os caras chamavam de checkpoint, ao longo do Aterro do Flamengo.

Foi-se a época em que o aterro era a maneira mais rápida de chegar na Zona Sul. Agora era assim, um protesto, um assalto, uma vidraça quebrada, qualquer coisinha e o trânsito atravancava, com a presença dos soldados.

Não era bem a polícia... Mas eles melhoraram um pouquinho essa experiência de viver no Rio de Janeiro. O trânsito foi o preço a se pagar pela melhora na segurança. O pessoal da comunidade dizia que os gringos são piores que a PM, mas... Eu não moro em comunidade mesmo e o que mais tem no morro é bandido. Não tenho muito por que acreditar; se fosse ruim assim, saía no jornal. Antes os abusos da polícia saíam no jornal o tempo todo!

O checkpoint foi chegando e eu coloquei o pé no freio. As portas do ônibus abriram com um suspiro e um estrondo; os soldados entraram, fuzil na mão. Eles sorriam com o fuzil na mão, mas dava tanto medo quanto as caras emburradas da PM.

— Good morning, Carlos. First trip of the day? — Eu lembrava da moça na porta, fuzil na mão e dentes a mostra. Ela me cumprimentava, quando parava meu ônibus. Se eu soubesse falar inglês melhor chamava ela pra sair.

—Mornin'. Yeah, first trip. — As palavras sairam da minha boca como se eu tivesse mastigando cascalho. Eu odeio falar inglês.



3.1. E.R.C.
— Então nós vamos comemorar os 7 anos de ocupação com uma retrospectiva?

— Isso mesmo. — A resposta do chefe veio com um meio sorriso. — Cara, não tem como não comemorar, de verdade. Hoje dá até pra mexer no celular na rua.

— Eu concordo plenamente. Mas então, como a gente vai fazer essa retrospectiva? Qual é o ponto de partida?

— O ponto de partida lógico seria o impeachment da Dilma, apesar dos protestos de 2014.

— Claro, foi o que acirrou a crise política, os protestos aumentaram, até chegar na delação do Joesley Batista, que envolveu o Temer. Mas essa delação também pode ser o ponto de início da nossa retrospectiva, já que foi o que começou a escalada pros protestos mais violentos. Se a gente começar por aí, tem espaço pra fazer uma análise sobre o que esperar pros próximos anos.

— Boa ideia. Mas eu não acho que vai mudar muito. Vamos fazer assim: me traz a sua análise política pro clima dos próximos anos, se eu gostar eu publico.

— Pera. Você acha que não vai mudar muito? você acha que eles não vão sair?

— Já ensaiaram sair tantas vezes... E não saíram. O que você acha que vai ser diferente agora?

Saí da reunião pensando no que o editor falou. Era verdade, absoluta.

Apesar da doce satisfação da minha vida de classe média, tranquila, sem solavancos, que ficou ainda mais calma depois da chegada das tropas... O jeito como o editor falou acendeu uma luz vermelha na minha cabeça. E a minha curiosidade foi o que me fez jornalista.



1.2. M.L.
— Every single woman in this world is a cunt. — Eu consegui ouvir o ar sendo sugado do recinto. A plateia me olhava, horrorizada. — Girls become cunts around 13, when they say 'no' to a man for the first time.

A piada atingiu a plateia como um soco. A gargalhada chegou com alguns momentos de atraso. Mas era o esperado. Era o planejado.

Recebi aplausos apesar de algumas caras fechadas. Eu já disse pra minha agente que não adiantava ela me vender pra gente conservadora, mas ela achava que a controvérsia era importante pra vender. Eu realmente não queria tomar um tiro.

Sob a tutela da Organização de Proteção Pan-Americana, nós ficamos tão americanizados, que até a violência mudou. Não tínhamos mais os traficantes e a brutalidade policial na favela. Mas tínhamos mais chacinas nas escolas e violência passional nas ruas. Ou pelo menos era o que o jornal mostrava.

Eu sei é que eu comecei a ficar com medo de tomar um tiro.



2.2. C.S.

A TV era como um canto de sereia, depois de um dia cansativo...

Gosto de novela, mesmo não tendo tanta paciência pra tv. O problema é que quase não tinha mais programa em português, além dos jornais e das novelas. Os matinais tinham legenda; a receita passava duas vezes, uma em inglês.

O comercial era em inglês. Tecla sap nos esportes. O brasileiro começou a seguir futebol americano, e se importava mais com os quarterbacks que com o esporte bretão.

Mas o que me deixava puto mesmo era esse pessoal dar espaço pra baseball, que jogo mais merda!

Era nas horas de ócio, controle remoto na mão, que eu realmente sentia a diferença daquilo tudo na minha vida. Lembrei que as mudanças não se estendiam aos botecos. Pelo menos a cerveja não me tiraram.



3.2. E.R.C.

A retrospectiva foi super bem recebida. Deu um trabalhão, fazer completinho como o chefe pediu, mas saiu direito. A parte boa foi que eu consegui desencavar um monte de material que me apontou na direção certa do que eu queria saber.

Em meados de 2017, com a Lava-Jato perdendo força, o governo Temer se agarrando ao poder com todas as forças, os protestos anti-corrupção/diretas já começaram a engordar. Ficaram progressivamente mais violentos, até o ponto em que beiraram a guerrilha urbana.

O tráfico, já bem estabelecido na área urbana brasileira, se aproveitou da confusão e criou uma guerra em duas frentes. A violência escalou a um nível bem complicado de controlar. Junta isso com a tão conhecida corrupção brasileira, em todos os níveis...

No início de 2018, ataques terroristas pipocaram pelo país. No início, era só vandalismo, assumido por grupos de oposição ao governo. Mas não demorou muito pra começarem as explosões. Pedir a ajuda da Organização de Proteção Pan-Americana (tratado assinado em 2011) começou a parecer uma saída, que era veementemente rejeitada pela população em geral.

Foi uma explosão próxima a usina nuclear de Angra 1 que começou a virar a opinião pública. Descobriram que a bomba explodiu antes de ser colocada dentro da usina.

O pânico moral tomou o país, e as tropas da OPP chegaram logo depois... O exército era majoritariamente americano.

E, apesar de ensaiar uma saída várias vezes, as tropas não saíram até hoje... Fim de 2028.

Mas por quê?



2.3. C.S.

— Mas eles não vão sair daqui 'merrrrmo'! — O bêbado do meu lado ignorou a sinuca e se virou pros amigos, abandonando o jogo em definitivo. — Esses americanos de merda tão de olho no nosso petróleo há anos, só esperando a chance de entrar no país... Vocês lembram do pré-sal?

— Caralho, Bira, tu é velho mesmo. Quase não se usa mais petróleo, porra.

— Tem o álcool, né?

— Aí, Bira, tu curte essas 'tiuria' da conspiração. Álcool é o caralho. Para com essas maluquera. Tá parecendo aqueles malucos que fica reclamando na praça. — Uma senhorinha desbocada se levantou e pegou outra cerveja no bar. — Esses filho da puta tá 'robano' mais que os político, por isso que não sai, pode apostar.

A cerveja terminada, sentei no bar. Fosse pelo motivo que for, os gringos não saíam... Mas aquele papo acabou me deixando uma pulga atrás da orelha.



1.3. M.L.

'A juventude é uma banda numa propaganda de refrigerante.'

Era incrível como os adolescentes, a juventude mudava mas tudo continuava o mesmo.

Eu olhava, do bar, a ladeira, a noite de inverno caindo cedo, enquanto eu bebia cachaça. As pessoas me olhavam estranho, mas eu sabia que a estranheza era de descobrir que alguém famoso era tão doente.

O dono do bar já me conhecia, então nem dizia nada, só enchia o copo. Ele sabia que eu tinha dinheiro pra pagar.

Segunda feira. Comigo só os bêbados da área e o pessoal que trabalhava em escala. Um rapaz jogava sinuca enquanto ouvia as teorias da conspiração dos mais velhos. Eu observava, fazendo anotações para um futuro show.

As queimaduras recém cicatrizadas na minha coxa começaram a coçar e eu meti a unha por cima da bermuda.

Eu gostava das comunidades. Me lembravam o lugar onde eu cresci.



3.3. E.R.C.

Era difícil manter uma lista de todas as multinacionais que fluíram para o Brasil depois dessa 'ocupação light'. Mais difícil ainda era desembaralhar os relacionamentos entre as corporações e quais conglomerados brasileiros foram comprados durante o processo de estabelecimento das companhias.

O que era claro era que a maioria das empresas que fluíram para o Brasil eram de fundação e sede americana.

E elas estavam ganhando rios de dinheiro... O que justificava a estadia prolongada.

Complicado era descobrir como, considerando a bagunça.



2.4. C.S.

O pessoal da OPPA chegou queimando borracha no asfalto. Os bêbados calaram a boca quando viram os carros e as luzes das sirenes, ninguém queria ser pego brincando de teoria da conspiração na frente das autoridades... Ninguém queria ser levado pra averiguação como protestante por nada.

A moça de cabelo sujo no canto do balcão nem levantou a cabeça. Também, ela estourou centenas de reais bebendo toda a cachaça boa que a dona escondia atrás do balcão.

Era um enxame de verde e coturnos se espalhando ladeira acima, fluindo pra dentro das lojas e dentro do bar.

Não demorou muito pra ter um fuzil apontado pra minha cara.




1.4. M.L.

Os gritos e o barulho de botas me chamaram a atenção e eu levantei a cabeça, só pra encontrar um cano de fuzil quase encostado na minha cabeça.

Segurando o fuzil estava um soldado gritão.

Eu levantei, como ele mandou, as minhas mãos levantadas. Mas a verdade é que o mundo tava rodando um bocado, então eu segurei numa cadeira.

Tomei um tranco, e um tapa.




3.4. E.R.C.

O vídeo estava nítido o suficiente pra ver todos os envolvidos. Um monte de gente de classe baixa num bar, na beira de uma ladeira de Copacabana e uma comediante alçada ao estrelato logo depois da invasão, Máxima Lemos.

Máxima está em petição de miséria; obviamente bêbada, mas o problema dela com álcool era de conhecimento público... E já era esperado. Comediantes. Ela se levanta, como o soldado manda, mas cambaleia e segura numa cadeira. O soldado não hesita em aplicar a truculência patenteada da polícia brasileira (isso eles aprenderam bem, pra alguma coisa o intercâmbio serviu); empurra a mulher com uma mão e emenda com um tapa na cara da moça.

O rapaz ao lado dela, mais alto, mais forte, impede que ela caia. Máxima segura na camisa dele e cospe no chão, aos pés do soldado.



2.5. C.S.

O cuspe que saiu da boca da moça de cabelo sujo estava laceado com sangue. Eu nunca tinha visto isso ao vivo, só no cinema. Um tapa tão forte que fazia sangrar.

Ela estava mole nos meus braços, a tontura da porrada levando o resto de coordenação que ela ainda tinha. O soldado continuava gritando, tão rápido, que eu não conseguia entender muito bem o que ele estava dizendo. A única coisa firme na moça era a mão dela, segurando minha camisa.




1.5. M.L.

Demorou um bocado pra eu conseguir ficar de pé. Depois do tapa, vi preto, senti o mundo desabando e uma pessoa me segurando. Devia ser meu anjo da guarda. Ele me segurou, me impediu de cair no chão. A única coisa que eu ouvia era o soldado me chamando de terrorista vagabunda.

Meu anjo não me soltou. Me colocou de pé, e ficou do meu lado, segurando meu braço.

— Terrorista é o caralho. Terrorista porra nenhuma. Meu nome é Máxima Lemos e seu superior vai saber disso, seu merda. Amanhã mesmo você vai estar em casa tomando aquele mijo de cavalo que você chama de cerveja, gringo cuzão. — Falei mesmo, por que entre o meu falar arrastado sujo de álcool e o português, eu tinha certeza que ele não ia entender.



3.5. E.R.C.

No vídeo, a coisa fica meio confusa depois do tapa, tem um tanto de gritaria e a Máxima xingando, bêbada. Dá pra entender que o pessoal da OPPA está procurando alguém que tem relação com alguma explosão recente. Máxima se agarra no rapaz que a ajuda a ficar de pé e continua xingando, a fala arrastada.



1.6. M.L.

O cano da arma na minha frente, o meu anjo do lado, e só tem uma coisa que eu sei que vai desfazer esse mal entendido. A voz do soldado é alta e clara quando ele se refere a nós. Pretos filhos da puta. Latinos de merda.

Os documentos. Eu tenho que pegar minha carteira de identidade.



2.6. C.S.

A moça fala alguma coisa sobre a identidade dela, mas nem teve tempo de colocar a mão toda no bolso. O estrondo veio acompanhado de uma bala, que atravessou a testa dela. O corpo da moça fez um arco pra trás, e ela me soltou.

Eu já sei o que aconteceu, nem quero ver. Consigo sentir o tanto dela que espirrou em mim. Fecho os olhos e rezo pra não ser o próximo.



3.6. E.R.C.

Vem a polícia brasileira e a ambulância, tirar a comediante morta do asfalto. O rapaz foge na confusão, trêmulo, mas vivo. O resto do vídeo é história, e a retirada das tropas da OPPA.

Mas aí, o estrago já estava feito. Os Estados Unidos já tinham conseguido assegurar o controle de uma boa parte dos nossos recursos hídricos, da nossa água potável.

Era uma ocupação mesmo. A gente é que não viu.

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