A Bela e a Fera

Para a Oficina ELFA (Escritores de Literatura Fantástica e Associados). Dezembro de 2016.



— Vai. — A Fera disse, toda dentes e elegância, vestida no seu melhor terno.

Bela, finalmente livre, solta, correu para dentro da boate, bastões retráteis em ambas as mãos. Fera guardou a corrente no bolso e observou, satisfeito, a eficiência brutal de sua companheira, que dançava, um furacão de sangue e destruição, no meio dos mafiosos. A coleira dela brilhava suavemente toda vez que ela se mexia.


Fera puxou suas pistolas e se moveu, percorrendo a pista de dança no sentido anti horário, dando cobertura à Bela, permitindo que ela se deliciasse na sua selvageria.

Era tão forte a pequena que, quando o último homem caiu, estava toda coberta de sangue, os corpos dos oponentes aos seus pés, transformados em uma massa vermelha, disforme.

— Você fica ainda mais linda assim. E o gosto de sangue parece que realça seu sabor. — A Fera disse, segurando o queixo de Bela e beijando-a nos lábios suavemente. — Você sabe onde está o Mercador, não sabe? Você ainda lembra.

Bela, em silêncio, assentiu. A Fera ainda via a dor do passado nos olhos da moça, muita mágoa, muita tristeza. Ele roçou os lábios nos dela novamente, sorriu com o suspiro da pequena beldade.

— Falta pouco, minha amada. Nos já vamos para casa. — Ela assentiu e olhou para uma das portas no salão. — Pode ir, querida. Estou logo atrás de você.

Como um teleguiado, ela seguiu para a porta. Ele foi atrás, verificando os pentes nas pistolas, contando as balas. Se posicionaram um de cada lado da porta e sorriram, se encarando. A Fera assentiu e Bela bateu na porta com força, uma vez.

A resposta foi um tiro de calibre doze, abrindo um buraco na porta de metal. Rápida, mas delicadamente, Bela jogou uma granada dentro do que ela sabia que era um corredor. Gritos se seguiram ao som abafado da explosão e a porta se abriu, pessoas fugindo do corredor em chamas. Bela colocou os óculos escuros e atirou a segunda granada. Fera sorriu e mandou um beijo à distância. Um relâmpago, uma explosão e Fera, já devidamente equipado, entrou no corredor, armas vomitando chumbo quente em jatos.

Uma mão trêmula se levantou das carcaças no chão, portando uma arma. Teria alvejado a Fera, se Bela não estivesse atenta. O estalo dos ossos foi audível, o gemido, já nem tanto.

O par seguiu boate adentro, se movendo coordenadamente, dançando um ao redor do outro, se envolvendo, enquanto deixava um rastro inescapável de morte e destruição.

Uma porta escura fez com que a Bela parasse. Ela estremeceu, o olhar marejado de lágrimas, o lábio inferior se projetando pra fora.

— É aqui.

— Calma, meu amor. — A Fera disse, puxando a moça para a parede e pressionando seu corpo imenso contra o dela. — Calma. Respira fundo.

Ela pressionou o rosto contra o peito dele, respirando profundamente, se centrando no cheiro do suor dele. Ele pressionou os lábios contra o topo da cabeça dela, sussurrando pequenas juras de amor.

Com o canto dos olhos, Fera viu mais capangas se aproximando. Sem se mover, levantou as mãos. Mirando pelos cantos dos olhos, ele atirou repetidamente. Uma bala pra cada um.

— Precisamos ir. Vamos terminar o que viemos fazer, e vamos voltar pra casa. Olha pra mim. — Ele esperou que Bela olhasse para cima, depois sorriu. — Você quis isso. Eu quis te dar esse momento. Tudo o que nós vivemos até agora foi pavimentando o caminho até aqui. — Ele prendeu a corrente na coleira dela, mais uma vez, e levantou o rosto dela para beijar o canto da boca. — Precisamos nos libertar.

Bela assentiu e levantou a cabeça. Se separaram, chutaram a porta.

O Mercador estava sozinho, sentado em uma cadeira confortável, atrás de uma mesa imensa. Bela entrou primeiro, os bastões retráteis nas mãos, os passos firmes, a cabeça levantada.

— Ah. Você. Eu devia saber que era você, Bela. — O mercador disse. O sorriso dele era sujo, provavelmente por conta da mente repleta de memórias dos anos pré pubescentes da mulher à sua frente. — Estava com saudades. E você, sentiu saudades do papai? Das suas irmãs?

Bela apenas sorriu, um sorriso roubado da Fera, dentes e elegância. Não se moveu.

— Você cresceu tanto! Ainda é linda, apesar de já ser uma mulher. Teria sido bem feliz aqui comigo...

— Se você não tivesse me dado como pagamento por uma pequena transgressão sua. — Bela disse, dando de ombros. — Pois é, né? Se me amasse mesmo, eu não seria moeda de troca.

Ela caminhou na direção da mesa, em passos lentos, as mãos atrás do corpo. Um andar tímido, marcado pelo barulho dos saltos, uma versão satírica do desfilar que tinha sido ensinado a ela quando muito jovem, projetado para enfatizar sua inocência, para seduzir ao mesmo tempo em que escondia a experiência sexual já imposta à criança. Partia o coração da Fera ver aquilo, da mesma forma que partiu quando ele viu pela primeira vez.

Bela jogava com as armas que tinha. Sempre foi assim. Na presença do homem estranho, ela fazia o que sabia lhe dar um tanto de controle. A Fera, compadecida, negou a oferta da criança. Achou uma família que criasse a pequena. Se surpreendeu quando Bela voltou, anos depois, mudada, adulta, furiosa, exigindo vingança.

— Ô, bebê. Você sabe que não é assim...

— Sei sim, paizinho. Sei que você me amava tanto que não vendeu o que eu tinha de mais precioso. Isso você tomou pra você. — Bela contornou a mesa, toda doçura. — Minha infância inteira, minha inocência, minha sanidade. Você me roubou de crescer, de amadurecer, de ser feliz, de amar.

Rápida, num bote, ela pulou em cima do Mercador, um dos bastões na mão, a outra mão no pescoço do velho.

— Mas pelo menos você me deu pra pessoa certa. Abre a boca, paizinho!

Em pânico, o Mercador abriu a boca. Ela enfiou o bastão retrátil, ainda fechado, dentro da boca dele, empurrando a ponta redonda goela adentro.

— Agora você vai fazer o que me ensinou, paizinho. Vai chupar... Mas olha só, chupa com cuidado! Meu polegar está no botão que abre o bastão, o indicador no botão que dá choque. Se eu sentir, ou se eu ouvir seus dentes, você vai se arrepender amargamente.

A Fera fechou a porta. Não queria ver os planos de Bela, mas sabia que precisava estar ali. Por ela. Por todo carinho que ela deu a ele. Ele devia a Bela não só seu carinho, seu amor, mas sua lealdade também. Ele ficou para ver o traficante de crianças ser humilhado, violado, torturado, e, enfim, morto, com requintes de crueldade.

No fim de tudo, Bela deixou os bastões pra trás; compraria outros. Não queria nada mais que fosse associado ao Mercador. Tirou o colete, as calças, as armas. Vestindo apenas a coleira, abraçou a Fera, e foi coberta com o imenso paletó risca-de-giz do parceiro.

Mais tarde, em casa, limpos de corpo e alma, os dois dividiram um jantar. Fera ocupava o lugar que lhe cabia, aos pés da Bela, comendo apenas o que ela lhe dava. A coleira brilhava agora ao redor do pescoço dele.

— Querido, você acha mesmo que as pessoas acreditam nisso tudo? Nessa loucura que nós encenamos?

— É mais fácil que elas acreditem que eu criei, que eu moldei você do que acreditarem que foi você que fez de mim quem eu sou hoje. As pessoas acreditam no que elas querem acreditar, minha senhora. — A Fera acolheu o pedaço de carne na boca e lambeu os dedos da dona antes de continuar. — Eu não me importo. Minha vida é servir a senhora da maneira que achar melhor.

Bela acariciou os cabelos da Fera, o olhar perdido na noite que se mostrava pela janela.








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