Livramento
Março, 2017
Findo o solo do canhão na investida, é hora dos ganchos fazerem seu papel. Fernão corre para o convés, girando o gancho de forma furiosa, pronto para a abordagem.
Do lado dele as pessoas mais fortes da tripulação, cada uma com seu gancho, girando, girando...
Um grito de mulher corta o ar. A Dama se inclina à bombordo, em direção ao outro navio. Os pés treinados fincam na madeira, os ganchos voam pelo ar. Quer Deus que o gancho de Fernão quebre a cabeça de um homem na queda. O som dos ganchos caindo na madeira do outro barco sinaliza a hora de puxar. Fernão grita seu sinal e a tripulação puxa as cordas, correndo para o outro lado do navio, usando toda a sua força para aproximar os dois monstros de madeira.
A lateral dos barcos se choca e a tripulação d'A Dama grita, feliz.
Os membros da tripulação que não estão nas cordas começam a saltar para o outro barco, espadas desembainhadas. Fernão puxa e se move pelo convés de forma que ele possa enxergar a batalha.
Um vulto coberto de couro corre pelo convés d'A Dama e se atira no outro navio, duas espadas em mãos. Capitã Rocha. Ela gritava, guiando a abordagem, seguida pelo som das espadas e da dor de quem tivesse o azar de encontrar suas lâminas.
Ela dança, as lâminas brilhando no sol, cortando, estocando, levando a vida de cada oponente de forma rápida e eficiente. A mulher era pequena, de ombros largos, a pele cor de terracota e coberta de cicatrizes. Ele não conseguia deixar de admirar a beleza furiosa, violenta da capitã, tão diferente dele. Fernão ainda não tinha nenhuma cicatriz de batalha. Era novo no negócio da pirataria; a pele escura, da tonalidade da sépia, ainda era totalmente lisa, intocada.
Ele sentia um tanto de vergonha, mas as mulheres da tripulação gostavam de olhar. Especialmente a Capitã. Ela sempre dizia que se fosse da escolha dela ele continuaria assim, sem marcas. Que a lembrava de quando eles se conheceram.
Port-Royal não era das piores cidades pra passar o tempo. Mas Rocha já estava a tanto tempo no mar que qualquer terra firme era incômoda, qualquer cidade era um inferno. O problema não era o suor ou o cheiro, era a sensação de morte, de doença no ar. Era meio hipócrita pensar assim, peste seguia até nos navios, mas Rocha aceitava qualquer motivo pra explicar o ódio irracional que ela tinha por cidades.
Vestida de homem, Rocha se esgueirava pelas ruas sujas, num calor de rachar, e por que? Por um maço de papéis. Um maço de papéis que pagaria um barco novo, bem mais seguro pra tripulação.
Rocha suspirou e limpou o suor do rosto com a mão. Era um a missão ao mesmo tempo fácil e suicida. Fácil por que era só a invasão de uma casa. Suicida por que era casa de gente rica, gente importante, casa bem guardada.
Puxou o chapéu, coçou a cabeça e colocou de volta. Ainda bem que mantinha o cabelo curto, ficava tudo mais fácil.
Fernão observa a dança da morte devastando o convés do outro navio, com uma certa apreensão. Ele sabe que a tripulação poupa quem quer que se renda, mas ele também sabe que há quem prefira morrer à perder a carga. Pessoalmente acredita que é burrice, mas cada um sabe das escolhas que são melhores pra si.
Um momento de distração e ele sente um puxão nas cordas. Contra-ataque. Um cai no chão, a corda partida, e ele sente a tensão em sua corda, o peso redistribuído subitamente. Fernão urra, puxando com toda a sua força, e os navios se chocam novamente.
A Capitã grita ao longe. Dessa vez não uma ordem, mas um grito de dor. Fernão não tem dúvidas: solta sua corda e corre através do convés. Com um salto potente, seus pés tocam o convés do navio abordado. Ele ouve os gritos da tripulação d'A Dama e o navio chacoalha um pouco. Puxaram de volta.
Ele desembainha suas facas e olha a volta. Rocha está na popa, cercada por três homens com espadas longas. A manga do casaco de couro já está rasgada o suficiente para deixar visível o sangue dos ferimentos.
Fernão respira profundamente e se move, puro instinto. Com um encontrão, ele atira um dos homens longe. O segundo ele afasta com um coice, o pé inteiro plantado no peito do mercador baixinho. A Capitã trespassa o terceiro, mas não consegue impedir que o homem abra um talho no rosto de Fernão; um corte vertical separando a sobrancelha esquerda e terminando na bochecha, sem realmente atingir o olho.
A casa nem estava tão bem guardada assim. Capaz do dono estar viajando. Rocha se permitiu duvidar do objetivo de sua missão por um momento. Será que os papéis estavam ali?
Entrou sorrateiramente na casa, o mais silenciosa que conseguiu, e procurou o escritório. Certo que qualquer papel que ela estivesse procurando estaria em um escritório.
Rocha prendeu a respiração quando viu um punhado de guardas muito bem armados. O grupo passou e ela entrou por uma janela aberta. A sorte estava a seu favor. Fechou a janela da forma mais delicada que podia, e seguiu pela casa.
Descobriu o escritório no segundo andar. Vazio. Ela ouvia os passos de outras pessoas pela casa ao longe, provavelmente algum tipo de patrulha. Rocha tentou enxergar pela porta entreaberta, mas só conseguia ver a luz fraca, bruxuleante, das velas. Os sons de passos se aproximaram; teve que tomar uma decisão rápida.
Em uma poltrona, de costas para porta, estava sentado um homem imenso, lendo. Distraído, ele virava as páginas; nem imaginava que tinha mais alguém na sala.
Na penumbra, Rocha puxou sua arma. Rodeou o homem, até ser vista, uma mão nos lábios e a arma apontada para ele.
— Nul besoin de se blesser. Je veux juste des papiers. — Ela sussurrou, a pronúncia do francês sofrível. O homem se virou pra ela, olhos arregalados.
Era lindo; deviam ter mais ou menos a idade, mas ele tinha a aparência bem cuidada dos ricos. Os cabelos dele eram mais longos que os dela, mais grossos, enrolados em cachos firmes. A barba era rala nas bochechas, farta no queixo, formando um cavanhaque respeitável. Ele assentiu, colocando o livro na mesa ao seu lado, depois colocou as mãos imensas em cima dos próprios joelhos. Se ele resolvesse reagir, seria um oponente imbatível... Mas os olhos dele mostravam o medo de uma pessoa que não sabe lutar.
— Prenez ce que vous voulez.
Fernão recua, cambaleando, o sangue fluindo livremente pelo rosto, dificultando a visão. Os dois oponentes já estão novamente de pé, e a Capitã se vira para o que está mais perto, tentando encerrar a batalha o mais rápido que pode.
O outro se aproveitou da situação e veio correndo, faca em punho, para cima da Capitã.
Os olhos cheios de sangue, Fernão se joga no caminho da faca.
Tudo deu muito certo à princípio, pra dar muito errado no fim. Um guarda entrou de surpresa no escritório, Rocha deu um tiro nele, no susto. O rapaz da poltrona se levantou e para a surpresa de Rocha, abriu um esconderijo nas estantes. Ele sinalizou que ela entrasse e, boquiaberta, ela o fez.
De dentro da estante, Rocha aguardou os tiros, e as mãos que a levariam pra cadeia. Nada disso veio. Ela ouviu o rapaz mandando os homens para longe, e depois de um tempo, ele abriu a porta, sussurrando uma torrente contínua de francês.
— Me desculpa, não entendo francês tão bem. — Rocha disse, fazendo uma careta.
— Vem comigo, eu vou te levar até a rua. Não esqueça o que veio buscar.
— Ai, caraças, Fernão! — Rocha grita, levantando a camisa dele para tratar o ferimento que ele sofreu em batalha. — Tu podias ter morrido!
Fernão ri, uma mão enluvada segurando os cabelos cacheados, depois geme, depois chora. Colocam uma madeira entre os dentes dele, e tratam os ferimentos. Ele desmaia, desacostumado à dor, e quando acorda, já é noite fechada. A cabine da capitã tem apenas uma vela acesa, tremeluzindo levemente.
Rocha está sentada ao lado da cama; A Dama era como que um berço balançando todas aquelas almas sob o céu estrelado.
— Não é a primeira vez que você me salva, mas é a primeira vez que corre risco de vida... Ainda não sei o por quê.
— Como finalmente perguntou, respondo de bom grado: tenho um débito com a senhora.
— Não diga besteira.
— Quando matou aquele guarda e aceitou me trazer, a senhora me libertou da gaiola dourada que me prendia, Capitã. A senhora me deu escolha. Por conta da senhora eu conheci o que é amizade, eu vi lugares que eu nunca imaginei. Por conta da senhora eu aprendi até o que é o amor. Se eu sei o que é a felicidade, é por conta dos seus atos.
— Você só pode estar delirando. — Rocha se levantou e colocou a mão sobre a testa de Fernão. Não estava mais quente do que o normal.
— Pode ser que a senhora não entenda como, talvez morra sem entender... Mas a senhora me salvou de uma existência medíocre. Me deu o mais precioso dos bens, a liberdade.
— Pois bem, que seja. Considere sua dívida paga.
— Nunca. — Fernão sorriu e fechou os olhos. — Guy-Louis talvez aceitasse essa oferta. Mas Fernão da Madinina sabe bem o que deve, e sabe bem como paga.
Findo o solo do canhão na investida, é hora dos ganchos fazerem seu papel. Fernão corre para o convés, girando o gancho de forma furiosa, pronto para a abordagem.
Do lado dele as pessoas mais fortes da tripulação, cada uma com seu gancho, girando, girando...
Um grito de mulher corta o ar. A Dama se inclina à bombordo, em direção ao outro navio. Os pés treinados fincam na madeira, os ganchos voam pelo ar. Quer Deus que o gancho de Fernão quebre a cabeça de um homem na queda. O som dos ganchos caindo na madeira do outro barco sinaliza a hora de puxar. Fernão grita seu sinal e a tripulação puxa as cordas, correndo para o outro lado do navio, usando toda a sua força para aproximar os dois monstros de madeira.
A lateral dos barcos se choca e a tripulação d'A Dama grita, feliz.
Os membros da tripulação que não estão nas cordas começam a saltar para o outro barco, espadas desembainhadas. Fernão puxa e se move pelo convés de forma que ele possa enxergar a batalha.
Um vulto coberto de couro corre pelo convés d'A Dama e se atira no outro navio, duas espadas em mãos. Capitã Rocha. Ela gritava, guiando a abordagem, seguida pelo som das espadas e da dor de quem tivesse o azar de encontrar suas lâminas.
Ela dança, as lâminas brilhando no sol, cortando, estocando, levando a vida de cada oponente de forma rápida e eficiente. A mulher era pequena, de ombros largos, a pele cor de terracota e coberta de cicatrizes. Ele não conseguia deixar de admirar a beleza furiosa, violenta da capitã, tão diferente dele. Fernão ainda não tinha nenhuma cicatriz de batalha. Era novo no negócio da pirataria; a pele escura, da tonalidade da sépia, ainda era totalmente lisa, intocada.
Ele sentia um tanto de vergonha, mas as mulheres da tripulação gostavam de olhar. Especialmente a Capitã. Ela sempre dizia que se fosse da escolha dela ele continuaria assim, sem marcas. Que a lembrava de quando eles se conheceram.
Port-Royal não era das piores cidades pra passar o tempo. Mas Rocha já estava a tanto tempo no mar que qualquer terra firme era incômoda, qualquer cidade era um inferno. O problema não era o suor ou o cheiro, era a sensação de morte, de doença no ar. Era meio hipócrita pensar assim, peste seguia até nos navios, mas Rocha aceitava qualquer motivo pra explicar o ódio irracional que ela tinha por cidades.
Vestida de homem, Rocha se esgueirava pelas ruas sujas, num calor de rachar, e por que? Por um maço de papéis. Um maço de papéis que pagaria um barco novo, bem mais seguro pra tripulação.
Rocha suspirou e limpou o suor do rosto com a mão. Era um a missão ao mesmo tempo fácil e suicida. Fácil por que era só a invasão de uma casa. Suicida por que era casa de gente rica, gente importante, casa bem guardada.
Puxou o chapéu, coçou a cabeça e colocou de volta. Ainda bem que mantinha o cabelo curto, ficava tudo mais fácil.
Fernão observa a dança da morte devastando o convés do outro navio, com uma certa apreensão. Ele sabe que a tripulação poupa quem quer que se renda, mas ele também sabe que há quem prefira morrer à perder a carga. Pessoalmente acredita que é burrice, mas cada um sabe das escolhas que são melhores pra si.
Um momento de distração e ele sente um puxão nas cordas. Contra-ataque. Um cai no chão, a corda partida, e ele sente a tensão em sua corda, o peso redistribuído subitamente. Fernão urra, puxando com toda a sua força, e os navios se chocam novamente.
A Capitã grita ao longe. Dessa vez não uma ordem, mas um grito de dor. Fernão não tem dúvidas: solta sua corda e corre através do convés. Com um salto potente, seus pés tocam o convés do navio abordado. Ele ouve os gritos da tripulação d'A Dama e o navio chacoalha um pouco. Puxaram de volta.
Ele desembainha suas facas e olha a volta. Rocha está na popa, cercada por três homens com espadas longas. A manga do casaco de couro já está rasgada o suficiente para deixar visível o sangue dos ferimentos.
Fernão respira profundamente e se move, puro instinto. Com um encontrão, ele atira um dos homens longe. O segundo ele afasta com um coice, o pé inteiro plantado no peito do mercador baixinho. A Capitã trespassa o terceiro, mas não consegue impedir que o homem abra um talho no rosto de Fernão; um corte vertical separando a sobrancelha esquerda e terminando na bochecha, sem realmente atingir o olho.
A casa nem estava tão bem guardada assim. Capaz do dono estar viajando. Rocha se permitiu duvidar do objetivo de sua missão por um momento. Será que os papéis estavam ali?
Entrou sorrateiramente na casa, o mais silenciosa que conseguiu, e procurou o escritório. Certo que qualquer papel que ela estivesse procurando estaria em um escritório.
Rocha prendeu a respiração quando viu um punhado de guardas muito bem armados. O grupo passou e ela entrou por uma janela aberta. A sorte estava a seu favor. Fechou a janela da forma mais delicada que podia, e seguiu pela casa.
Descobriu o escritório no segundo andar. Vazio. Ela ouvia os passos de outras pessoas pela casa ao longe, provavelmente algum tipo de patrulha. Rocha tentou enxergar pela porta entreaberta, mas só conseguia ver a luz fraca, bruxuleante, das velas. Os sons de passos se aproximaram; teve que tomar uma decisão rápida.
Em uma poltrona, de costas para porta, estava sentado um homem imenso, lendo. Distraído, ele virava as páginas; nem imaginava que tinha mais alguém na sala.
Na penumbra, Rocha puxou sua arma. Rodeou o homem, até ser vista, uma mão nos lábios e a arma apontada para ele.
— Nul besoin de se blesser. Je veux juste des papiers. — Ela sussurrou, a pronúncia do francês sofrível. O homem se virou pra ela, olhos arregalados.
Era lindo; deviam ter mais ou menos a idade, mas ele tinha a aparência bem cuidada dos ricos. Os cabelos dele eram mais longos que os dela, mais grossos, enrolados em cachos firmes. A barba era rala nas bochechas, farta no queixo, formando um cavanhaque respeitável. Ele assentiu, colocando o livro na mesa ao seu lado, depois colocou as mãos imensas em cima dos próprios joelhos. Se ele resolvesse reagir, seria um oponente imbatível... Mas os olhos dele mostravam o medo de uma pessoa que não sabe lutar.
— Prenez ce que vous voulez.
Fernão recua, cambaleando, o sangue fluindo livremente pelo rosto, dificultando a visão. Os dois oponentes já estão novamente de pé, e a Capitã se vira para o que está mais perto, tentando encerrar a batalha o mais rápido que pode.
O outro se aproveitou da situação e veio correndo, faca em punho, para cima da Capitã.
Os olhos cheios de sangue, Fernão se joga no caminho da faca.
Tudo deu muito certo à princípio, pra dar muito errado no fim. Um guarda entrou de surpresa no escritório, Rocha deu um tiro nele, no susto. O rapaz da poltrona se levantou e para a surpresa de Rocha, abriu um esconderijo nas estantes. Ele sinalizou que ela entrasse e, boquiaberta, ela o fez.
De dentro da estante, Rocha aguardou os tiros, e as mãos que a levariam pra cadeia. Nada disso veio. Ela ouviu o rapaz mandando os homens para longe, e depois de um tempo, ele abriu a porta, sussurrando uma torrente contínua de francês.
— Me desculpa, não entendo francês tão bem. — Rocha disse, fazendo uma careta.
— Vem comigo, eu vou te levar até a rua. Não esqueça o que veio buscar.
— Ai, caraças, Fernão! — Rocha grita, levantando a camisa dele para tratar o ferimento que ele sofreu em batalha. — Tu podias ter morrido!
Fernão ri, uma mão enluvada segurando os cabelos cacheados, depois geme, depois chora. Colocam uma madeira entre os dentes dele, e tratam os ferimentos. Ele desmaia, desacostumado à dor, e quando acorda, já é noite fechada. A cabine da capitã tem apenas uma vela acesa, tremeluzindo levemente.
Rocha está sentada ao lado da cama; A Dama era como que um berço balançando todas aquelas almas sob o céu estrelado.
— Não é a primeira vez que você me salva, mas é a primeira vez que corre risco de vida... Ainda não sei o por quê.
— Como finalmente perguntou, respondo de bom grado: tenho um débito com a senhora.
— Não diga besteira.
— Quando matou aquele guarda e aceitou me trazer, a senhora me libertou da gaiola dourada que me prendia, Capitã. A senhora me deu escolha. Por conta da senhora eu conheci o que é amizade, eu vi lugares que eu nunca imaginei. Por conta da senhora eu aprendi até o que é o amor. Se eu sei o que é a felicidade, é por conta dos seus atos.
— Você só pode estar delirando. — Rocha se levantou e colocou a mão sobre a testa de Fernão. Não estava mais quente do que o normal.
— Pode ser que a senhora não entenda como, talvez morra sem entender... Mas a senhora me salvou de uma existência medíocre. Me deu o mais precioso dos bens, a liberdade.
— Pois bem, que seja. Considere sua dívida paga.
— Nunca. — Fernão sorriu e fechou os olhos. — Guy-Louis talvez aceitasse essa oferta. Mas Fernão da Madinina sabe bem o que deve, e sabe bem como paga.
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