Foco

Para a Oficina ELFA (Escritores de Literatura Fantástica e Associados). Abril de 2017.


— E como é que estão as coisas?

— Depois do remédio novo?

— Isso. Faz quanto tempo que você começou a tomar mesmo?


— Três semanas.

— E como você está se sentindo, Eleanora? — O psicólogo perguntou, folheando as anotações.

— Melhor. Melhor que no hospital e melhor que com o último remédio. — Eleanora se ajustou no sofá e colocou as mãos nos joelhos. Estava mentindo. Estava mentindo novamente.

Os remédios permitiam que ela conseguisse fazer o que era esperado dela, de uma forma funcional. Comer, trabalhar, cuidar das coisas... Mas toda vez que ela tomava os remédios ela sentia que alguma coisa faltava em sua vida.

— Você ainda vê aquele vulto te seguindo? O vulto com a roupa brilhosa?

— Não, não mais. Só tenho uma sensação de dissociação, como se eu não fosse eu. Como se eu fosse outra pessoa, vendo, vivendo um filme em 3d, sabe? Como se meus olhos fossem as câmeras, meu corpo um veículo. Como se eu fosse um personagem de um livro e um dia, um dia esse livro vai fechar e eu vou deixar de existir, sem como nem porquê.

O psicólogo assentiu. Fez mais algumas perguntas. Ela escolheu não falar sobre a sensação de vazio dentro do peito, a sensação de que estava tudo errado, muito errado, de que ela estava presa em uma ilusão pouco satisfatória, do desespero de sentir nos ossos que tudo era mentira e que ela só queria, mais que tudo no mundo, saber a verdade.

A sessão acabou sem que ela percebesse, e ela desceu, no automático, para a rua escura.

O vento fresco do inverno carioca a atingiu em cheio. Os carros ocupavam a avenida Nossa Senhora de Copacabana, o trânsito intenso enchendo o nível do solo de barulho e luz. Eleanora se sentiu confusa e perdida, como sempre. Andou a esmo na calçada, fazendo uma prece silenciosa a presenças místicas inexistentes. O céu estava estrelado e a brisa arrepiava as bochechas da moça; os pés dela, como autômatos, buscaram o caminho mais seguro. Dois quarteirões e estava na praia.

Sem os prédios para segurar o fluxo, o vento estava mais forte, e a fez estremecer. O céu estava escuro e estrelado; nem a iluminação pública conseguia diminuir a luz das estrelas.

Eleanora sentia apenas medo. O medo cruel, surdo, onipresente, que a acompanhava desde a adolescência. O medo de estar perdendo a única coisa que realmente tinha na vida, a sanidade.

Olhou para o mar, para a noite. O Forte de Copacabana do seu lado direito, a curva da praia, se estendendo por quilômetros iluminados ao seu lado esquerdo; uma faixa de concreto iluminado, uma faixa arenosa branca e uma faixa escura, o mar e a noite se mesclando, estrelas e espuma salpicando a escuridão.

Estaria enlouquecendo? Já estava louca? Como outros antes dela, ficaria tão insana que seria a confinada a paredes brancas e criaturas de voz suave, os remédios tão fortes que turvariam sua visão, transformariam sua boca em uma ineficaz represa de saliva?

Sentia a loucura como uma onipresença, lentamente se aproximando, cada dia mais próxima e Eleanora sabia que a alcançaria um dia, daqui a anos, meses, dias... Amanhã... Talvez daqui a algumas horas. Uma presença sólida e constante, esperando a hora certa de fincar suas garras e presas.

Eleanora olhou para o céu, depois para as pedras pretas e brancas da calçada. Um pé, depois o outro, se arrastou pela orla, o medo, o desespero consumindo sua alma.


— É uma pena. — Disse o vulto negro vestido de estrelas, observando a moça sozinha na calçada. — Eu mesmo nunca achei que ela sofreria tanto entre os seus filhos. Tenho vontade de buscá-la, mas ao mesmo tempo receio que esse sofrimento seja parte do que ela buscava, quando encostou os pés no chão.

Uma mulher vestida em tecido cor de creme e azul, observava ao seu lado. Os cabelos, escuros como a pele do homem ao seu lado, encostavam na areia, em ondas, apesar dos pés também estarem separados da areia por uma fina camada de ar, assim como os pés do homem ao seu lado.

— Ela é sua esposa, Noite. E de nós, ela é a mais doce, é ela que cura as dores, que compreende, que dá paz. Se você for buscá-la, ela vai entender... Mais do que ninguém, ela vai entender. Por que você foi atrás dela?

— Eu sinto saudades... Sinto tantas saudades... Eu precisava ver o rosto dela. Eu nunca achei que ela conseguiria me ver se estivesse com os pés no chão, achei que ela seria como os outros. Se eu soubesse... Se eu soubesse o que aconteceria, eu nunca teria ido.

— Mas do futuro, só ela sabe, não é? Ela nos toca de forma diferente, mas ainda assim nos toca. Eu também sinto saudades.

— Vê como ela te busca, mesmo sem saber, Mar. Ela sente sua falta também.

— Ela se sente feliz na minha presença. E eu na dela. Fico feliz que ela tenha em si o desejo de me visitar. Sabe que, mesmo sem entender, ela conversa comigo enquanto nada? Pena que ela não consegue me ouvir muito bem.

— Eu tive uma ideia. Mas eu preciso de um favor seu. — Com um sorriso para Mar, Noite se afastou, se movendo ao longo da praia para não perder Eleanora de vista. — Talvez eu possa visitá-la por algum tempo. Mas eu preciso de alguém que me busque, Mar. Eu não quero ficar entre eles, eu só quero a companhia dela. Matar saudades. Sentir o amor dela mais uma vez. Eu vou colocar os pés no chão, você me busca amanhã, estamos combinados?

— Eu já aprendi que não posso te dissuadir, assim como não pude convencê-la a não fazer isso. Se eu não puder te buscar, mando sua irmã. — Mar assentiu, sorrindo. — Eu só não acho que você vai querer voltar. O toque dela sempre foi sua força, meu amigo.

Noite assentiu e pisou adiante. Um passo se tornou uma corrida e depois de algum impulso, os pés tocaram no chão. Quando chegou ao lado de Eleanora era todo humano, jeans e camiseta, um sorriso brilhante como as estrelas das quais ele se despiu.

Mar observou os dois conversando, como amigos de longa data. As mãos se enlaçando, as bocas se unindo num beijo delicado. Mar sorriu e deu as costas para os prédios.

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