Areia e Pó de Estrelas

Para a Oficina ELFA (Escritores de Literatura Fantástica e Associados). Abril de 2017.

Elodie sentou no chão de madeira podre, perto da porta da sala, abraçada com o rifle velho que herdou do pai. Duas pistolas, ainda mais velhas que o rifle, descansavam ao seu lado, perto da coxa, esperando apenas a hora de serem usadas. Lá fora, os bandidos gritavam impropérios, xingavam, chamavam o nome da moça. O som selvagem de cascos circundava a casa. O bando conseguiu o que queria, Elodie estava apavorada.


— Elodie Rea! Ouve bem, criatura imprestável! — O líder dos bandidos gritou, bem na frente da porta. — A gente sabe que tu tá sozinha aí. Eu vou deixar trinta dólares aqui na porta, você tem até amanhã, meio dia, pra sumir da cidade.

— Nunca! — Elodie gritou, tão cheia de ódio, que tremia. — Essa terra é minha, por direito!

Os bandidos riram. Ela ouviu os cascos de um cavalo se movendo, pancadas ocas na terra seca. Ela conseguia imaginar a poeira que os cavalos estavam levantando lá fora.

— Seja razoável, mulher. Teu pai tá morto, tu não teve a capacidade de prender marido e o xerife tá pouco se fodendo. Você nunca vai conseguir manter essa fazenda sozinha! Tu ainda tem sorte de que eu tou te dando dinheiro pela terra.

— Minha terra vale bem mais do que isso, animal.

— Tua vida vale bem mais do que isso. Tu pode levar o que conseguir carregar. Leva um cavalo, se quiser. Se eu te achar aqui quando eu chegar amanhã, você vai se arrepender. — Ele concluiu, secamente. Elodie tremeu, lembrando das histórias que contavam sobre o bando.

— Vocês nunca vão encostar um dedo em mim!

— Ninguém quer isso, mulher. A gente já te viu andando pela cidade. Eu não colocaria a mão em você se fosse a única puta em toda a Overland Trail, desgraçada.

Os cavalos se afastaram, marcando a terra seca da mesma forma que as lágrimas marcavam as bochechas de Elodie.



A casa não era grande, os móveis eram poucos. Elodie era uma mulher de poucas posses. Arrumar as malas sob a luz da alvorada foi fácil. Uns poucos vestidos, uns poucos itens de valor sentimental. Se olhou no metal polido que faziam de espelho, enquanto se arrumava. Decidiu trocar o vestido que usava pelas calças e as botas do pai, recém falecido. Pegou o casaco também.

No fim, tinha colocado as roupas do pai na mala também. Elas seriam bem mais úteis na viagem do que os vestidos.

Olhando o espelho de frente, via um homem. Um homem baixo, troncudo, encarava de volta no reflexo.

Elodie não tinha nada dos tão celebrados 'encantos femininos'. A mãe morrera cedo, fora criada pelo pai pra ser um par de mãos na fazenda. A diferença entre ela e o pai era que ela usava saias, e mijava de cócoras. Até andavam igual.

Não que nunca tivesse se deitado com um homem. Tinha se deitado com alguns, sem que ninguém soubesse. Uns na esperança de ser esposada, outros por desejo... Uns poucos por algo que ela percebia por amor.

Nenhum a quis, genuinamente. Alguns achavam que podiam ensiná-la a ser mulher, outros queriam saber se a moça estranha se deitava como as outras; ainda havia os que simplesmente buscavam um corpo quente e não se incomodavam que fosse o dela.

As vezes ela se perguntava, olhando no espelho de metal polido, se era realmente esse o problema: a falta de adornos, os cabelos mal cuidados, as roupas velhas, a falta dos saltos. E ela tentou. Ela sempre esquecia dos cabelos, as orelhas inflamavam, as pernas doíam, os vestidos da moda eram muito incômodos, renda coçava...

Acabava decidindo que era quem era, e era o que era. E que se o preço fosse ficar sozinha, que fosse.

“Antes o preço fosse só a solidão,” ela pensou, colocando o chapéu e levando a mala para a porta.



O plano era simples. Viajar à esmo até onde os trinta dólares a levassem.

E assim fez.

Acabou chegando em uma terra rosa, que brilhava vermelho sob o sol. Montanhas e colinas se espalhavam pelo horizonte, formações de terra e pedra listradas em outros tons de rosa e vermelho. O resultado era tão inclemente aos olhos quanto o sol era pra pele.

Com seus últimos dólares na bolsa, ela chegou a uma estrada que logo à frente se conectava à rua principal de uma cidade. Ela conseguia ver as pessoas andando pela rua, de onde estava, e um prédio alto, de três andares, todo azul e branco, de janelas impecavelmente seladas.

Uma casa de prazeres An'quari. Por que eles eram muito elegantes pra usar a palavra puteiro.



Ninguém sabe muito bem de onde os An'quari vieram realmente. Eles diziam não ser dessa terra, e os indícios apontavam para isso. Eram uma raça de homens e mulheres lindíssimos, de pele muito pálida com um brilho azulado. Os cabelos eram longos, muito claros, dos mais variados tons. Se não fosse pelo tom de pele e pelas cores dos cabelos, se passariam por humanos, tranquilamente. Altos, se moviam com uma elegância que encantava o olhar, e, aparentemente, acendia o desejo dos homens.

Depois de muitas disputas e muita briga, acharam seu lugar na expansão da fronteira construindo e controlando as casas de prazeres. O povo de bem dizia que as casas eram apenas prostíbulos elegantes. Baixinho, sussurravam que as casas An'quari eram capazes de prover quaisquer prazeres que uma alma desejasse.

Era manhã alta quando Elodie alcançou a frente da casa An'quari. Os céus sabiam que ela precisava, pelo menos, do prazer de um banho quente, de uma cama macia, de uma boa refeição. Talvez fosse a providência, mas parecia uma boa maneira de gastar seus últimos recursos. Amarrou o cavalo na frente do prédio e entrou, carregando a mala e as armas.



Apesar das janelas tapadas, era um ambiente muito bem iluminado. Claro o suficiente para que se pudesse ver tudo, não tão claro que não houvesse uma penumbra, um quê de mistério. A sala era imensa, com um bar de um dos lados e uma escada ao fundo. Várias mesas estavam espalhadas pela sala, e ao longo das paredes; sofás imensos, com estofado de tecido.

— Já encerramos as atividades do dia. — Uma voz maviosa como os cantos dos pássaros flutuou até Elodie. A portadora da voz era uma mulher altíssima, pálida-azulada, com os cabelos apenas um tom mais escuro que a pele. Os olhos eram de um azul profundo, brilhante. Ela se aproximou, deslizou os dedos ao longo do braço de Elodie e segurou a mão da moça.

— Só estou buscando um banho quente e uma cama macia, madame. Comida, se a senhora ainda tiver algo na cozinha.

A An'quari encarou a humana por longos momentos, os olhos penetrantes. Elodie encarou de volta, apesar de desconfortável, mudando seu peso de um pé pro outro.

— Só isso? — A pergunta veio carregada de uma malícia estranha, não sexual. Mais como se a outra mulher soubesse de segredos que a própria Elodie desconhecia.

— Eu vim em busca de conforto. — A verdade fluiu de forma tão natural, que surpreendeu até ela mesma.

— Guarda o teu cavalo atrás da casa... Pode deixar as tuas coisas aí mesmo. Teu guia estará na sala, quando você voltar.

Elodie inclinou a cabeça, depois saiu, sem dar mais uma palavra. Tinha a sensação de que tudo já estava dito.



Quando retornou, a égua já acomodada no estábulo, com água e palha limpa, Elodie encontrou a sala principal toda apagada. A única luz vinha das frestas das janelas, penetrando a sala através do papel que cobria o vidro. Perto da escada, um outro vulto azulado, de cabelos pálidos. Vulto esse, decididamente masculino.

Alto, como todos os An'Quari, os ombros eram compactos, os braços e as pernas longos. Ele tinha o corpo magro e musculoso, de uma elegância visível até no modo como ele aguardava, parado. As sobrancelhas dele eram grossas, arqueadas, o nariz longo, pontudo. A boca era fina, a testa alta, como um homem humano em quem o cabelo estivesse começando a rarear. Os olhos eram de um azul esverdeado, como um lago cristalino.

O conjunto era de uma beleza impossível de aceitar, de absorver. Elodie achava difícil sustentar o olhar. Ele sorriu, caminhou até ela, estendeu as mãos com delicadeza e tomou as dela.

— Bem vinda. Meu nome é Cas, serei seu anfitrião por hoje. Suas coisas estão no quarto. Venha comigo.

A voz dele tinha uma qualidade agradável. Era grave e aveludada, as palavras envoltas em um sotaque elegante que emprestava a beleza dele ao que dizia. O polegar dele deslizava sobre as costas da mão de Elodie, a pele dele lisa, macia.

Andaram juntos pela casa, de mãos dadas, até um quarto no segundo andar. A cama era grande, e parecia convidativa, a roupa de cama perfeitamente limpa. Uma mesa, perto da janela fechada, tinha uma refeição fria servida; carnes, queijo, pão, uma garrafa. Na outra ponta do quarto, uma pequena banheira para duas pessoas, a água dentro dela levantando vapor.

Elodie observou as velas acesas e a janela fechada.

— Não é melhor abrir a janela? Economizar as velas?

— Nossa pele é sensível ao sol. — Cas disse, fechando a porta. — Na verdade, nossa pele é especialmente sensível à luz, ao calor e e ao toque.

Com um movimento elegante, ele apontou para a banheira, a mão aberta.

— Eu disse pra madame que não precisava de companhia. — Elodie hesitou, pensando no quanto dinheiro ainda tinha.

— Livre de custo, não se preocupe.



Durante o banho, Elodie notou que Cas a banhava com um caneco, esfregava sua pele com uma esponja, ou com as mãos nuas, mas não colocava a mão na água. Ela tentou impedi-lo de ajudar algumas vezes, mas ele sempre negava com a cabeça, sorrindo, e continuava o trabalho.

— A água vai esfriar um pouco mais e aí eu posso entrar com você, não se preocupe.

Dito e feito. Algum tempo depois, o An'quari estava nu na banheira com ela. Ele era como uma visão de um sonho; perfeitamente humano e perfeitamente belo. Entrou na banheira atrás da moça e fez com que ela se recostasse contra ele, os braços enlaçando o tronco dela, as mãos deslizando pelo corpo menor.

Uma euforia estranha, vaporosa, tomou conta de Elodie. Um prazer difuso, diluído na água e espalhado por cada centímetro da pele da moça, embriagando a consciência.

Cas beijou o ombro da moça, depois deslizou os lábios finos ao longo do pescoço, os dedos se movendo ao longo da curva do seio dela.

Naquele abraço, Elodie sentia apenas paz.



Elodie comeu, bebeu, dormiu. Acordou à noite, o corpo quente e macio de Cas ao redor do dela. O quarto estava escuro, a cama macia e quente cedendo sob o peso dos corpos combinados dos dois.

Como todo o sonho que ela já teve, como toda felicidade, todo prazer, toda alegria, esse momento também tinha hora para acabar. Ela pensava no dinheiro da bolsa, em quanto tempo ela ainda podia comprar daquela sensação de satisfação.

Alguma parte da mente divagou pras histórias que ela ouvia de homens e mulheres entregues à ruína pelos braços dos An'Quari. Agora dava pra entender o porquê.

— Vocês estão sempre pensando no depois. Ou no antes. Nunca no agora. — Cas sussurrou, enroscando as pernas nas de Elodie, as mãos dele acariciando a pele exposta. — Assim o agora não dura dentro de você. E amanhã você não lembra de hoje.

— Existem coisas para se preocupar.

— Amanhã de manhã. — O An'quari abraçou a humana, segurando a cabeça dela contra o peito. — Amanhã.

— Mas...

— O que você tem é o suficiente. Descanse.

Elodie respirou fundo. A cama cheirava ao calor do corpo dela. Ele cheirava à flores, plantas. Ela estendeu a mão e passou os dedos na pele dele, muito delicadamente. Cas suspirou e se anhinhou contra o corpo de Elodie, apertando-a forte.

Entre suspiros, Cas deslizou as pontas dos dedos ao longo das costas dela, os dedos esguios do An'quari desenhando formas incompreensíveis ao longo da coluna da moça. Em resposta, ela beijou a clavícula dele, depois traçou a área com a ponta da língua.

Ele se reajustou na cama, e Elodie sentiu o pau de Cas, duro, roçando contra a coxa. Mas ao contrário dos outros homens com quem se deitou, ela não precisou mexer, lamber, estimular diretamente. Ele também não estava subindo em cima dela, tentando meter aquilo desengonçadamente em algum orifício.

Era como se ele a desejasse também. Como se só o calor da pele dela já tivesse despertado desejo dentro dele.

Cas segurou a cabeça da moça, as palmas frias emoldurando o rosto redondo, e olhou dentro dos olhos dela por longos momentos. Elodie sustentou o olhar, perdida na beleza daqueles olhos de cor inumana. Dentro dela florescia um calor, um sentimento perdido no tempo, deslocado no espaço, tão inútil quanto era intenso. Um sentimento que a mulher sabia que só trazia dor, decepção e desespero. Um sentimento indomável, inadequado, incômodo e lindo.

O An'quari sorriu e beijou a boca de Elodie, os dedos correndo pelos cabelos dela, depois se levantou.

— Preciso ir. A Mãe chama, é hora do serviço.

— Mãe?

— A Mãe An'quari comanda a casa. — Cas disse, suavemente, enquanto se vestia. — Ela lidera, guia, organiza. Ela também recebe os visitantes, determina as necessidades.

— Eu não estou ouvindo nada... — Elodie se mexeu na cama, recostando nos travesseiros, observando os movimentos do An'quari. Ele se movia lenta e elegantemente, cada movimento eficiente, cheio de propósito, e ainda assim, transbordando graça. No silêncio, só se ouvia o farfalhar dos tecidos. A desconfiança típica da moça acordou, sussurrando que o desejo, as carícias, a gentileza dele, eram apenas mentiras. Ela era o serviço. Já vestido, ele voltou pra cama e acariciou o rosto dela.

— Não ouvimos só o que se diz. — Ele disse, o polegar acariciando os lábios dela. — Ouvimos também o que se pensa. Em especial, Elodie, ouvimos o que se sente.

O beijo de despedida foi um mar de sensações intensas. Os lábios dele sobre os dela, as pontas dos cabelos fazendo cócegas no rosto e nos ombros dela, as mãos de ambos acariciando e apertando os braços, as mãos um do outro. Quando acabou, Elodie estava sem ar, ofegante. Cas apenas sorria, um sorriso amável, gentil.

— Volto antes do amanhecer. — Ele disse, antes de fechar a porta. — Você fica. Descansa.



Os sons da noite foram chegando aos poucos aos ouvidos de Elodie. Botas e sapatos subindo e descendo as escadas, trovejando pelos corredores. Com certeza humanos, pesados, os passos tão desajeitados que abafavam o som dos passos mais elegantes dos An'quari.

Também podia ouvir os sussurros passando pela porta, risadas; imaginava o flerte agradável entre nativos e estrangeiros, até que o casal chegasse ao quarto. Ali, outros sons surgiriam, gemidos, grunhidos e suspiros, pequenos pedidos, ordens, súplicas desesperadas.

Ela ouvia tudo isso deslizando os dedos pelos lençóis macios, respirando fundo, determinada a gravar cada momento em sua mente; cada cheiro, cada sensação, cada som. A mente, insistente, se desvencilhava do agora e voltava para as memórias do passado recente; focada no beijo, no cheiro, na textura da pele de Cas.

Com um suspiro, Elodie se levantou da cama e pegou mais água da moringa azulada que descansava sobre a mesa, junto com os restos da última refeição, que não eram muitos. Ela pensou em pedir uma janta, mas lembrou dos recursos esparsos. Comeu os pedaços de pão que restavam na mesa, junto com a água, enquanto considerava seus próximos passos.

Precisava de um emprego, urgentemente. De comida para si e para a égua. De um teto, esse com menos urgência.

Mas o que a incomodava realmente era a compreensão de que essa satisfação que sentia, esses momentos de felicidade não só durariam pouco, como eram irreais, compras que ela fizera, com os últimos centavos que tinha. Estava distraída com uma ilusão fugaz, que tinha hora pra acabar.

Pior ainda: estava experimentando coisas, sentimentos, que eram proibidos para ela, de outra forma. Entrar ali fora um erro. Talvez ela nunca se recuperasse desse breve esbarrar com a plena felicidade, mesmo comprada.




Elodie acordou novamente com o dia já alto, Cas aninhado ao corpo dela, beijando-lhe de leve a nuca e os ombros.

— É hora. — Cas disse, com um tom gentil, a voz uma carícia contra a concha da orelha da moça.

Ela se levantou e esfregou os olhos. O quarto estava limpo das sobras da noite anterior, baldes de água limpa do lado da banheira vazia.

— Achei que você iria querer um banho, mesmo não tendo tempo pra água quente.

— Obrigada.

— E tem café e um pedaço de pão.

A mulher assentiu, o semblante sombrio. Com um sorriso, o An'quari a guiou para a banheira.

Tomaram banho juntos, mais uma vez, e comeram juntos, Cas observando Elodie, furtando pequenos toques enquanto se moviam.

Um certo desgosto tomava conta da moça, pouco a pouco.

Desceram as escadas juntos, ele carregando as malas, ela carregando as armas.

O An'quari parou no meio do salão, colocou as malas no chão e chamou Elodie.

— A Mãe quer falar com você. — Afirmou, simplesmente. Elodie se virou para ele, ainda segurando as armas, e assentiu. Cas pareceu hesitar. Depois de um longo momento, ele deu os dois passos que o separaram de Elodie, roçou os lábios contra os dela e saiu do salão.

O salão estava novamente vazio, as luzes apagadas. De manhã, ou de noite, o lugar era impressionante. O prédio era grande e ela só tinha visto o salão, os corredores e um quarto. Como seriam as outras áreas da casa?

— Elodie. — A Mãe An'quari entrou na sala; Elodie, tão distraída que estava com seus pensamentos, só a percebeu quando a outra mulher falou. — Você está feliz? Está satisfeita?

As perguntas, simples e diretas, descarrilaram o pensamento da moça. Demorou alguns momentos até que ela percebesse que a pergunta era sobre a estadia. Assentiu, então, simplesmente, depois colocou a mão livre no bolso. A Mãe An'quari, vendo o gesto, sorriu e assentiu em resposta.

— A senhorita tem interesse em ficar na cidade? — A Mãe repetiu o movimento de alisar o antebraço de Elodie mas, desta vez, puxou a mão dela de dentro do bolso e apertou suavemente.

— Por que a pergunta?

— Precisamos de ajuda aqui. Ajuda de pessoas que podem sair durante o dia.

— Você está me oferecendo um emprego.

— Exatamente. Pagamos um pequeno valor por dia, oferecemos pousada e comida.

Elodie pensou em perguntar por quê. Decidiu que cavalo dado não se olham os dentes. Assentiu.



Os dias passavam tranquilamente. O trabalho era simples. Estocar a casa, levar e trazer mensagens, cuidar de mantimentos, dos cavalos. Ela se mantinha no quarto durante a noite, ouvindo os barulhos da casa. Os An'quari da casa olhavam de longe e a medida em que os dias passavam, eles pareciam mais receptivos à presença de Elodie. Pouco a pouco ela aprendeu o nome de cada um deles; toda vez que se encontravam pela casa, os An'quari faziam questão de pelo menos acariciar o rosto ou as mãos de Elodie. Com o tempo, passaram a beijá-la também. Todo o dia ela via Cas, pelo menos uma vez. Ele fazia questão de sorrir para a moça e cumprimentá-la com abraços apertados, as mãos deslizando pelas costas dela. Ele sempre beijava as bochechas da moça em despedida, beijos demorados e doces.

Toda manhã, algum tempo depois da casa fechar, a Mãe An'quari convocava Elodie até a sala, pagava o seu dia de trabalho e estabelecia as tarefas para o dia seguinte.

Naquela rotina gentil os dias viraram semanas e as semanas viraram meses, sem que Elodie percebesse.



Numa manhã, antes do horário costumeiro do encontro com a Mãe An'quari, Elodie ouviu o barulho suave de batidas na porta. Do outro lado, uma An'quari que Elodie conhecia pelo nome de Eleanora.

— A Mãe mandou chamar. — Eleanora disse, suavemente, olhando para a camisola sem mangas de Elodie. — Não precisa se vestir não. Vem agora.

Com um sorriso, a An'quari segurou a mão da humana e a guiou pela casa.

No terceiro andar, as paredes e os corredores eram de um metal cinza azulado, polido, o chão era um pouco mais escuro. Elodie se sentia tensa, ansiosa. Eleanora era só sorrisos e doçura, os dedos dela acariciando os da humana, de leve. Chegaram a uma porta, dupla, que estava fechada. Pararam.

A An'quari beijou a bochecha de Elodie levemente, depois roçou o nariz e os lábios de leve no rosto da humana, sussurrando algo em sua língua materna.

Elodie ficou imóvel, surpresa. As mãos de Eleanora deslizavam pelos quadris e pela cintura da outra moça, a carícia leve como a sensação do tecido mais macio.

— Melhor? — Eleanora perguntou, Elodie assentiu. A An'quari beijou a humana, nos lábios, com uma gentileza ímpar, depois a virou para a porta. — Agora abre.

As mãos de Elodie tremiam ao empurrar a porta.



Dentro da sala, uma imensa mesa, e o som de risos. Todos os An'quari da casa estavam ali, arrumando tudo para uma refeição. Elodie percebia poucas palavras, mas muitos risos, enquanto carregavam pratos, tigelas, talheres para a mesa. Eleanora empurrou Elodie levemente, encorajando-a a entrar.

Os An'quari se viraram para ela, sorrindo, estenderam as mãos. Elodie foi passada de abraço em abraço, as mãos dos outros residentes da casa deslizando pelo corpo dela, enquanto ela era beijada por cada um deles. Na testa, nas bochechas, nos lábios, no pescoço. Cada corpo a acolhia com um sorriso e uma caricia.

— Elodie, bom dia. — A Mãe An'quari disse, antes de beijar Elodie nos lábios e abraçá-la, aninhando a moça contra o peito. — Já faz bastante tempo que você está aqui, é hora. Sua ajuda tem sido valiosa. E ao contrário dos outros humanos que já nos ajudaram, você não quis tomar mais do que é de direito... Sempre agiu com doçura e delicadeza. Nós queremos que você divida a mesa conosco, divida a nossa casa.

Elodie sentiu os olhos marejando, as lágrimas ameaçando rolar, mesmo por cima do sorriso que teimava em esticar o rosto. A Mãe An'quari a apertou mais forte, esfregando as costas da humana. Elodie ouvia um sussurrar dos An'quari a sua volta, mas, com o rosto pressionado contra os seios da Mãe An'quari, ela não sabia exatamente o que estava acontecendo.

Um corpo quente se pressionou contra as costas da humana, uma boca deslizou pelo pescoço, depois pela curva da orelha. A voz de Cas preencheu o ar ao redor dela.

— Ouvimos sua dor, Elodie. Sua alma canta uma canção muito parecida com a nossa. Senta conosco, vamos partilhar o alimento.

A Mãe An'quari assentiu e acariciou os cabelos de Elodie gentilmente. Depois de um tempo, se desvencilhou da humana e se sentou a beira da mesa.

Cas guiou Elodie para um lugar na mesa e prontamente sentou do lado da moça. Eleonora se sentou de frente e esticou a mão, para acariciar a de Elodie, que franziu a testa.

— Vocês são muito carinhosos. Tão sempre se encostando, encostando em mim... — Elodie constatou, pegando um pedaço de pão próximo. — Eu nunca conheci ninguém assim. Nem sei se isso existe entre a minha gente.

Alguns na mesa assentiram, murmurando entre si, roçando os antebraços e os ombros. Era como se o afeto corresse através deles como uma corrente elétrica, transmitida pele a pele, como uma pequena onda de afeto que crescia a cada movimento. Elodie observou a movimentação, surpresa, até que Cas roçou as mãos e os antebraços nos dela. Sem saber como agir, Elodie encarou Cas fixamente. Ele sorriu em resposta e, com as longas mãos azuladas, guiou as mãos de Elodie até o an'quari sentado do outro lado da moça.



— É difícil se acostumar com isso, com o contato. — Elodie disse, deitada na cama, Cas do seu lado. — Desde que eu comecei a partilhar as refeições com vocês todo mundo encosta em mim o tempo todo. Eu só fico sozinha a noite, no meu quarto, quando você não vem me visitar.

— Você é uma de nós. É assim que nos comportamos. — Cas apertou o corpo de Elodie contra o dele, as pontas dos dedos deslizando pela pele do braço dela. — Lembra que eu disse que nossa pele é sensível?

— Hmmm. — Elodie roçou o nariz no peito do an'quari, assentindo. — Ao toque, ao calor e ao sol, especialmente.

— Não é só nossa pele que é sensível. Nós somos sensíveis uns aos outros. É difícil explicar... Nós partilhamos tudo, até o prazer... Quando nos tocamos, sentimos o prazer de tocar e sentimos os ecos do prazer de receber o toque. Nós sentimos o sorriso e as lágrimas uns dos outros. Nós sentimos o amor, o prazer, a dor, a raiva... A solidão uns dos outros.

Elodie beijou o pescoço de Cas, esperando que a carícia afastasse o peso daquela ideia. Ela não conseguia conceber sentir por si e pelos outros. Parecia um fardo pesado demais para suportar.



— Você parece feliz, Elodie, parece mais confortável em nosso meio, nos nossos costumes. — A Mãe An'quari disse, uma manhã durante a refeição matinal. — Como você se sente?

— Bem.

— Cas e Eleanora tem dormido com você todos os dias, não?

— Sim senhora. — Elodie não conseguiu evitar corar ao responder. — As vezes juntos. Já faz alguns meses que eu não durmo sozinha.

Os An'quari a volta sorriram, e assentiram, a costumeira onda de afeto se espalhando por eles, engolfando Elodie.

— Eu acredito que é hora de trazer Elodie para o nosso dormitório. Acho que ela já está acostumada conosco o suficiente para fazer a transição sem estranheza ou desconforto. — A Mãe An'quari disse, delicadamente, oferecendo um pedaço de pão. — Sua presença é prazeirosa e muito bem vinda, mas não é confortável para nós sentir o seu estranhamento. Eu pedi que Cas e Eleanora ajudassem com o processo... Mas agora é hora da refeição. Nós conversamos sobre isso em breve.

A refeição ocorreu com um clima diferente, parecia que os An'quari guardavam um segredo divertido e precioso. Todos sorriam para Elodie, acariciavam as mãos dela. A humana se sentia numa sala em que cada um daqueles corpos irradiava amor. Nos menores meneios, nos menores detalhes, ela se sentia amada.

O dormitório, para onde ela foi levada em seguida, era uma sala larga, ainda no terceiro andar, que tinha a maior parte do chão acolchoada. Essa área estava cheia de almofadas e cobertores, largados. Um por um, os An'quari se despiram e se alojaram nos travesseiros, se aninhando uns contra os outros, como uma ninhada de pequenos mamíferos. A medida em que se deitavam, grupos se formavam entre eles, beijando, se acariciando. A medida em que os outros companheiros se deitavam, mais e mais corpos se formavam uma rede de carícias e beijos.

Elodie observou o mar de corpos aumentando, até que as únicas pessoas fora da imensa cama eram ela, a Mãe An'quari, Eleanora e Cas.

A humana observou os An'quari se amando na imensa cama por algum tempo, encantada com a beleza dos corpos azulados. Mãos, bocas, braços se tocavam, os corpos movendo em ondas, as línguas deslizando em outras partes de um outro corpo. Gemidos começaram a brotar dos An'quari, como uma música estrangeira, vinda de outros tempos.

Elodie nunca tinha visto nada tão lindo.

A Mãe An'quari tirou a própria roupa e, antes de se unir aos seus, beijou Elodie gentilmente, sussurrando um convite.

Cas segurou a mão da humana e, com o olhar, fez uma pergunta silenciosa. Elodie assentiu, em resposta, e sorriu quando as mãos delicadas de Eleanora começaram a despi-la. Elodie foi gentilmente levada para o meio dos An'quari, que a receberam sem reservas.

O contraste da pele pálida com o azulado à volta, a voz humana destoando da música alienígena, no auge do prazer, o tamanho dos corpos, das mãos, o cumprimento dos cabelos, tudo era diferente entre eles. E ainda assim se uniam perfeitamente, sem barreiras, sem dúvidas, sem espaços. Um vórtex de carne, de desejo, de afeto se formava, e explodia em pulsos, ondas de prazer.

Depois, aninhada entre seus pares, Elodie sentiu uma lágrima solitária escorrendo pela bochecha. Ouviu um sussurro.

— Você está feliz, Elodie? Está satisfeita?

O coração dela se encheu da mais plena paz, de um sentimento tão perfeito que transgredia tempo e espaço, tão delicado quanto era intenso. Um sentimento que ela agora percebia que nunca entendera em sua plenitude. Um sentimento indomável, oportuno, bem-ajustado, incomensuravelmente belo.

— Amo vocês. E sou amada. — Ela disse, em um suspiro. — Estou em casa.

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