Keith - Oficina Colaborativa do Estranho Mundo - 4º Desafio (Primeira Parte)
"Sim, sim! Acabou a conversa mole, o papo furado. É hora da PARTE 1 do Desafio de criação de personagens.
Para criar o personagem desse exercício, considere Apolo e Dionísio como fontes de seus ingredientes. Agora pense no que o seu personagem tem de Apolo e o que tem de Dionísio dentro dele enquanto cria uma personalidade para ele. Lembre que ele pode ser apolíneo na carreira e dionisíaco em outras áreas, por exemplo!
Beleza? Beleza.
Mas como eu quero que vocês me entreguem isso.
Em um texto de 1 página, quero que me apresentem esse personagem. Será um texto em primeira pessoa. Incorporem o personagem e mandem ver.
Não é me passar um currículo, nem ficha de RPG falando quanto calça, o tamanho disso, a cor d’aquilo. Tá mais pra alguém escrevendo em um diário. Criem uma ficção. Me digam o que o personagem fez, do que ele duvidou, se ele teve algum medo, alguma angústia. Se, ao contrário, foi um dia foda pra ele. Se ele / ela encontrou aquela menina que ele / ela está a fim. Se ele / ela teve um dia ruim no emprego, se tá pensando em largar tudo para trás. Se acabou de receber uma herança ou se ganhou um Funko raro num leilão!
Em outras palavras, pra vocês, o que é importante num personagem? Pensem nisso ao escrever. Fácil fácil!"
Acordo com meus dois malteses lambendo minha bochecha. Parte de mim adora a alegria dos cachorros. Parte de mim fica incomodada com o fato de que somos só eu e eles na cama gigante e, considerando minha idade, isso não vai mais mudar.
Eu rolo, cuidadosamente, e pego os óculos. Os cachorros ocupam o pedaço de cama que eu acabei de abandonar. Espertos, eles, de aproveitar o calor que eu deixei.
Coloco os óculos e pego o celular. Uma miríade de notificações, a maioria do twitter, preenchem a tela. Eu suspiro e relaxo na cama; os cachorros se aninham embaixo do meu braço.
Não consigo evitar as memórias. Em outras épocas eu já estaria de pé, banho tomado, colocando meu terno. Eu olho pro armário entreaberto, pras gravatas penduradas, com uma certa saudade. Eu gostava do meu trabalho, eu sempre fui muito bom no que eu faço... Nunca gostei das pessoas, mas adorava meu trabalho. Correção: nunca gostei dos chefes, das amarras, das convenções. Mas era uma emissora e eu realmente não posso dizer que não sabia onde estava me metendo.
Eu sempre fui muito bom. Sempre me dediquei à minha carreira, mas só ao trabalho. Os relacionamentos interpessoais nunca foram importantes pra mim. Em nome do que eu achei certo, eu queimei pontes inteiras e os rios que correm embaixo delas.
Engraçado que toda vez que eu entro nesses climas melancólicos, que eu fico lembrando do passado, cheio de saudades, eu lembro de quando eu trabalhava com política, dez anos atrás. Nunca antes, nunca o trabalho depois desse. Eu sempre lembrava de meados de 2006. Não foi a época mais interessante da minha vida, ou o ápice da minha carreira, só foi uma época boa pra mim.
Talvez eu lembre por que dez anos atrás eu não estava sozinho.
Também não posso dizer que não sei por que eu estou sozinho.
Eu viro pra olhar pros cachorros, que estão aninhados em mim, dormindo tranquilamente. Talvez eu realmente só seja merecedor do afeto de animais irracionais. Talvez eu realmente só seja bom em lidar com as pessoas à distância. Talvez eu seja realmente tóxico. Nada disso aplaca a minha solidão nas primeiras horas da manhã.
Eu me levanto, depois de um tempo, por que não dá pra ficar deitado pra sempre. Tomo banho rápido, e evito me barbear, por que não quero me olhar no espelho. Eu já sei o que vou ver. O cabelo branco, as rugas, os olhos azuis me julgando de volta, me perguntando o que um homem da minha idade faz sozinho. Como eu não formei família, esse tipo de idiotice.
Hoje é dia de folga; inclusive das minhas próprias cobranças.
Me visto. Vou sair. Jeans, blazer xadrez preto e branco, um par de tênis azuis. Camiseta preta.
Já com a mão na maçaneta, eu lembro que não fiz a barba.
Tenho que confessar que hesitei por um momento. Mas a vaidade sempre vence. Melhor encarar os olhos no espelho que sair sem me barbear. Não posso ser visto assim na rua.
Ainda tenho a intenção de voltar a trabalhar, no fim das contas.
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